30.1.09

Lisboa-Porto-Lisboa num dia como este

Não consigo imaginar muitas coisas mais enfadonhas que uma corrida Lisboa-Porto-Lisboa num dia como este. À saída da última portagem, tem-se a sensação de que a auto-estrada é uma lavagem automática cara de mais. E um chofer tem de se entreter com alguma coisa. Esquecidos os CD em casa, e uma vez que outros choferes procuravam por todos os meios a minha morte violenta, fui inventando epitáfios. Macabro, eu sei, não tenho sido eu mesmo ultimamente, vinha até com medo que a BT me pedisse os documentos. Mas já dei uma voltinha por alguns blogues e fiquei mais descansado ao perceber que não sou só eu.

Depois de muito congeminar, afeiçoei-me a este:

BONE AGAIN AGNOSTIC

29.1.09

O corpo de B. Franklin, Impressor

No dia em que Benjamin Franklin morreu, choraram nas suas estantes mais de quatro mil volumes. Ridículo para os padrões actuais, eu sei, mas a dele era, à data, nada menos que a maior biblioteca privada da América do Norte. E que livros chorariam hoje pelos seus donos? Os meus, hmm, os meus acho que não.

Leia esse epitáfio que Franklin, impressor de ofício, compusera em jovem para a sua própria sepultura (tradução caseira):
O corpo de
B. Franklin, Impressor
(Qual Capa de um Velho Livro,
Estripado do seu Conteúdo
E Despojado de seu Título e Douraduras)
Aqui Jaz, Alimento para Vermes.
Mas não se perderá a Obra;
Pois esta (assim o Acreditava) Surgirá uma vez Mais
Em Nova e mais Elegante Edição,
Revista e Corrigida
Pelo Autor. *
Mas Benjamin mudou de ideias. A inscrição que hoje lhe adorna a sepultura, por vontade expressa no seu testamento, é bem mais modesta:
Benjamin and Deborah Franklin: 1790
A propósito, não sei se lho disse, mudei de óculos. Não que isso a si lhe faça diferença, mas aos meus livros… enfim, gosto de pensar que eles se importam.
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*The body of B. Franklin, Printer (Like the Cover of an Old Book Its Contents torn Out And Stript of its Lettering and Gilding) Lies Here, Food for Worms. But the Work shall not be Lost; For it will (as he Believ'd) Appear once More In a New and More Elegant Edition Revised and Corrected By the Author.

Ainda tenho uma vaga

28.1.09

De novo

Eu já tinha publicado este clip no BV, mas não resisto, aqui vai de novo.



(Le Sacre du Printemps, de Stravinski, coreografia de Pina Bausch, Tanztheater Wuppertal.)

Numa remota província da antiga China

Numa remota província da antiga China (são sempre remotas e sempre na China), os locais praticavam um cruel ritual propiciatório: todos os anos, ao som de Stravinski, faziam afogar duas virgens nas águas do grande rio que ali passa e que frequentemente transbordava, destruindo colheitas, habitações, vidas até.

Em hora feliz um novo governador chegou à província e com ele a notícia de que na capital mudara a dinastia: a China era agora dirigida por homens de superior instrução. Horrorizado com o barbarismo da cerimónia e da música de Stravinski, ele ordenou que os dois sacerdotes incumbidos do rito fossem de imediato afogados no rio que tantas vezes haviam propiciado. Depois projectou canais, diques, transvases; e as instruções do sábio foram executadas com tanto zelo e rigor que em menos de um ano a sua conclusão foi alegremente anunciada e celebrada com música de Grieg, Sibelius e uma banda convidada de que agora me escapa o nome.

O governador, frágil como todo o homem instruído, não viveria um mês para além do remate das suas obras: sentiu-se mal, morreu numa semana, diz-se que os deuses necessitaram dos seus valiosos serviços. A população da remota província da China recorda-o com carinho pela sua sabedoria, e todos os anos afoga dois sacerdotes nas águas do rio, o qual não voltou, até hoje, a estender-se para fora do seu caminho.

27.1.09

Mínimas

O fundamental quando se envelhece é não olhar para trás. Sabe, por causa dos ossos do pescoço.

21.1.09

We will bury you

O sapato lançado contra George W. Bush quase atirou um outro 43 biqueira larga para os abismos do esquecimento. Falo daquele que Nikita Kruschov descalçou em plena sessão das Nações Unidas e com o qual começou a bater em cima da mesa (vi em documentário, eu não era ainda nascido). O então primeiro-ministro britânico olhou para o intérprete e perguntou algo como: Importava-se de traduzir isso? E aquilo que podia ter dado em crise grave acabou em gargalhada geral.
Mas consta que o intérprete, esse, andou anos em terapia.

Nomenclatura

O meu filho fingiu que ficou um pouquinho sentido por eu ter levado a irmã ao concerto dos Il Giardino Armonico e não o ter convidado a ele, que não é menos carne da minha carne e não sangro eu quando me picam e tal. Expliquei-lhe que o Händel foi prenda de anos e lembrei-lhe que o tinha levado a ele à estreia do Stabat Mater do Carrapatoso e não convidara a irmã. Olhe a manha da criaturinha:

“Aaaaah, mas isso era música clássica moderna.”

Um dia levo-o a ouvir “música clássica moderna” e obrigo-o a ficar até ao fim, para ele aprender que devemos ser cautelosos com a nomenclatura.

8.1.09

60 dias

Abri a caixa do correio e lá estava o logótipo no canto do envelope. Rasguei-o ainda no átrio e comecei a ler a coisa pelo meio. Algo sobre como o requerimento tal e tal dera entrada em tal e tal e que “tem 60 dias para entr” e aí parei de ler, coloquei de novo a carta na caixa e fechei-a bem fechada.

Entrei em casa e comecei a folhear uma coisa sobre Kant, em francês, onde se alega, ao que percebi, que ele foi treslido por Sartre e se explica em que medida. Interessante. Dez minutos depois peguei em Night Watch, de Terry Pratchett. Conhece? Ele é famoso pelo seus livros sobre Discworld, um mundo em forma de disco que é suportado por uma tartaruga assente em quatro elefantes.

Um cão que me traga pantufas. Que cão? E eu é que sei?

5.1.09

O papel da gripe

Ameacei espirrar sobre o funcionário se ele não falasse com a notária ao telefone. Recuou um pouco na sua cadeira de rodinhas, mas não cedeu. Olhei em redor em busca de bebés que pudesse alugar e dizer meus, às vezes ajuda. Nem um. Foi então que me veio a ideia. Disse que ela, a notária, era linda – mentira nenhuma – e que eu tinha o poder de os pôr a falar um com o outro.

Do lado de lá da secretária balia agora um cordeiro, e quando lhe passei a chamada já todo ele era Bogart preparando-se para uma troca de ditos espirituosos com Bacall. Nem lhe ocorreu que o meu telemóvel tinha provavelmente mais vírus por milímetro quadrado que uma lamela de microscópio após um salto da prancha de dez metros para as profundezas peliculares de um disco de Petri.

Quando chegaram a um acordo, eu senti a cabeça deslizar do cepo para o patíbulo frio e molhado. Ainda estava presa ao corpo.

4.1.09

Melhorar as coisas

Charles Ives ao seu editor de música: “Senhor Price, por favor não tente melhorar as coisas! Todas as notas erradas estão certas.”