8.5.18

Delito de Opinião


Já fiz (mais do que) um filho, já plantei (mais do que) uma árvore, já escrevi (em mais do que) um livro. Este que agora a Bookbuilders dá à estampa reúne textos excelentíssimos de colegas do blogue Delito de Opinião e, porque ainda havia umas páginas em branco, uma dezena de palavras cruzadas da autoria deste que se assina. Espero vê-lo a si na Almedina do Atrium Saldanha, em Lisboa, pelas 18:30 de dia 10 deste Maio. Espero, não: exijo. Terei comigo um bloquinho de capa preta onde anotarei os nomes de quem não estiver lá. Aproveito a oportunidade para fechar as portas do templo de Jano aqui no Bandeira ao Vento (por onde há muito, por razões que não importa esmiuçar, não passa sequer uma brisa) e anunciar que nova versão abrirá em breve mesmo aqui ao lado. Até lá.

24.12.16

Feliz Natal!

Não é fácil ser-se o presumível pai de oito crianças (eram sete mas uma não resistiu) por alturas do Natal, sobretudo quando se está desempregado numa firma que paga tão pouco quanto a minha – uma startup ostentando digníssima inscrição na porta, no espaço livre entre as citações judiciais, com os dizeres “Emprendendo desde 2017”. Por várias vezes chamei a atenção para a falta de um “e” no enunciado; do economato respondem invariavelmente que a pouca tinta que circula ainda nas veias da velha impressora está reservada para coisas verdadeiramente importantes, como fotos de gatinhos tiradas do Instagram, bilhetes para a ópera (excepto o Don Carlos) e notas de banco, não forçosamente por esta ordem.

Procurei uma lojinha de brinquedos no centro comercial Pandemónio e solicitei à menina atrás do balcão – onde se escondia, soube-o depois, por não ter “nada para vestir” – que me aconselhasse uma prenda para oito crianças entre os três meses e os nove anos de idade; igual para todas, claro, porque eu jamais aceitaria favorecimentos à vista de toda a gente. Conversámos um pouco sobre como era engraçado que ela, com um doutoramento em Astrofísica e duas idas à Lua no currículo, tivesse acabado numa loja de brinquedos. “Todos os anos tenho dado o mesmo aos miúdos”, disse-lhe então (não sem dificuldade porquanto a menina, gemendo, batia com a máquina Multibanco na cabeça), “Licor Beirão para os mais novos e vodka para os mais velhos, para eles misturarem com o que quiserem e dessa forma incentivar o seu espírito de iniciativa; mas este ano faltam-me os meios e, além disso, queria variar um bocadinho”. “Cigarros são uma boa alternativa”, respondeu a astrofísica entre soluços, “os mais velhos de certeza que já fumam e os mais novos gostam sempre de ver os bonecos”.

É preciso algum cuidado com os conselhos de pessoas que vivem na Lua. Ainda assim, comprei uma garrafa de CRF e um pacote de Definitivos que encontrei num alfarrabista. Tenciono telefonar à minha mulher e convidá-la a aparecer, na condição de não trazer o Gelsão com ela. A família toda reunida, outra vez. Vai ser uma festa.

Rufino

27.3.16

À Humanidade

Porque John Donne está a morrer, ele escreve algumas Lamentações; nelas se queixa inclusive de que as dores o impedem de gozar na sua plenitude a experiência da morte. Escreve que "nenhum homem é uma ilha" e outras coisas lindas, quase sempre porém melancólicas e tristes.

Séculos depois, Hemingway usa em prefácio um trecho da 17a Lamentação, algo como: "Não perguntes por quem dobram os sinos; eles dobram por ti". Com isto queria Donne dizer que partilhava da Humanidade, e que morrendo um qualquer homem morria Donne um pouco também (já Terêncio, por outras palavras, sugerira algo assim). 

Em Hollywood fez-se um filme e o trecho prosaico da Lamentação de Donne ficou na memória que hoje sói chamar-se colectiva, muitas vezes tomado por verso, porque Donne era, antes de prosador morrendo, um poeta; e os poetas, não sendo ilhas, serão talvez penínsulas.

À Humanidade, uma Páscoa feliz.

23.3.16

As coisas que começam e as coisas que acabam

Eu teria uns dezanove ou vinte anos e queria muito escrever em jornais, mais até do que desenhar, talvez porque desenhar sempre soube e desenho melhor do que parece (perdoe este momento de soberba que pagarei em rigorosos planos prestacionais aos balcões da Eternidade); sucede que devemos reservar o melhor do que sabemos para mostrar às mães nas horas difíceis.
Já a escrever eu não nasci ensinado; foi o professor Branco, digníssimo avô de branquíssimas cãs e alvíssima bata (como um anjo de alguma idade) do actual reitor da Universidade do Algarve, quem me deu o privilégio — jamais esqueça que saber escrever é um privilégio —das primeiras letras, na escola número 33 do bairro lisboeta de Alvalade.

Mas tergiverso, perdoe, perdoe. Dizia eu que teria uns dezanove ou vinte anos e um dia chegou o convite do homem magro de brasão ao peito e cabelo empastado. Não desdenhe, na altura usava-se muito e agora talvez se volte a usar se o Vitória ganhar o campeonato. O convite era para um encontro e o encontro foi num dos bares do casino do Estoril; eu faltei à faculdade porque oportunidades assim não as havia todos os dias. Eu não tinha fato mas levei camisa, o que decerto deixou o empresário impressionado; tive também o cuidado de estacionar o velho Austin bem longe para que não se percebesse o quanto estava enferrujado, tanto que do lado do morto já não havia onde poisar os pés — alguns amigos mais sensíveis ainda se lembram disso, o asfalto correndo sob os pés deles e os calafrios bons que isso lhes causava.

O empresário pediu, digo, exigiu o seu uísque “em balão aquecido” e eu, ignorante que era das coisas do mundo, uma simples cerveja: sabia lá quanto custava um uísque. Eu fazia parte da categoria social a que então se dava o nome de “remediada”. Tinha uma única nota no bolso, acho que de 500 escudos, para gasolina e uma ou outra necessidade.

O cavalheiro, quero dizer, ele e “uns investidores ali do Estoril”, queriam lançar um semanário e contavam com o meu talento (como era ralo, o meu talento!) para escrever e ilustrar duas páginas “para a  juventude”. Em poucos meses, “máximo um ano”, o mercado — ao tempo não se dizia “mercado”, seria a mesma coisa com outro nome qualquer — era nosso. Eu estava comprado e vi os tons azuis e a gravata riscada de vermelho do homem magro erguer-se para dar por terminada a conferência. Então ele levou as mãos aos bolsos, pôs uma expressão contrafeita e disse, com ar de importância nenhuma, “Zé, não sei onde deixei a carteira, pague aí o meu uísque, sim?”

Paguei, lívido mas paguei; e voltei para Lisboa pela marginal — ainda não havia a A5 — rezando a santinhos em que não acreditava para que se não me acabasse a gasolina.

O jornal saiu quê, dois ou três números, depois fechou, foi como se nunca houvera existido, nem do título me lembro, nunca percebi o que sucedeu e eu se recebi alguma coisa foi uns tostões, que aliás não mereceria pelos meus méritos literários ou artísticos.

Mas até hoje, sabe, venho pagando esse uísque.

30.3.15

Clássicos para a Prainha: Os Trabalhos e os Dias


Hesíodo, humilde e pio agricultor, perde por subversão da Justiça uma causa; e no momento seguinte está a descrever as origens do Universo em hexâmetros dactílicos. Assisti a internamentos forçados por bem menos do que isso.

As atribulações de Hesíodo começam quando Perses, seu irmão, o arrasta para tribunal sob pretexto de discordar da partilha da herança paterna, apropriando-se no processo de um monte de ovelhas – julgo que se diz “um rebanho”, mas não estou seguro – através de uma técnica arcaica de corrupção envolvendo moedas e um par de mãos (aqui o pundonoroso leitor, imaginando com horror um corrupto juiz beócio do século VIII a.C., passa as costas da mão na larga testa suada e pensa, "Que sorte viver nestes impolutos tempos que são os nossos").


Hesíodo recupera moralmente da perda das ovelhas, mas Perses desbarata o produto do seu triunfo forense em manga erótica, linhas de valor acrescentado, raspadinhas, coisas assim; e vê-se forçado pela Deusa da Destituição – decerto havia uma na Grécia – a recorrer ao irmão. Timidamente sugere um depósito na conta bancária, indiferente se em cheque ou vale postal, mas o irmão (que em todo o caso, como bom rural que é, desconfia de bancos, sem razão, inteiramente sem razão) adopta uma postura entre o vingativo e o didáctico, redigindo para Perses Os Trabalhos e os Dias.


As dicas de Hesíodo relativas à lavoura, e mesmo algumas de índole mais pia – assim de repente lembro-me daquela em que exorta Perses a jamais verter águas em pé virado para o Sol –, quebram o gelo em qualquer festa; mas é ao mito de Pandora que as pessoas tendem a achar mais graça, mesmo as mulheres, as cujas Hesíodo coloca ao nível moral da barata. Pandora foi a primeira mulher, moldada à imagem das deusas imortais com terra e água por Hefesto, o deus coxinho, e dotada pelos restantes olímpicos de todos os atributos – sem esquecer a perfídia, a mentira, etc. Ela era o castigo divino por o titã Prometeu ter roubado o isqueiro a pai Zeus para o dar a uns homens que mal conhecia sem lhes cobrar sequer um cêntimo. Não há cigarros grátis.


Não direi que Hesíodo, lá por execrar as mulheres, aprovava o género masculino. Ele descreve as cinco idades do homem – a de ouro, em que o Windows instalava actualizações apenas quando não se estava a precisar do computador e os homens (lembre-se, não havia mulheres) eram tão felizes que morriam como que adormecendo; a de prata, quando a infância durava cem anos, após o que se falecia rapidamente por falta de cobertura do seguro médico; a de bronze, com gente tão violenta que mal nascia ia direitinha para o Hades; a dos heróis, com as suas guerras de Tebas e de Tróia e reformas douradas na ilha da Bem-Aventurança; por fim, a de ferro, a sua, dele, Hesíodo, a tal de Prometeu e do fogo, tão má que, enfim, perdoe, acho que não sou capaz de falar sobre isso.


Nem tudo está perdido, porém. É certo que 30 mil espíritos nos vigiam, que o olho de Zeus tudo vê e que a Justiça, sua filha, anda à coca (não literalmente) dos que procuram vencer causas nos tribunais através de estratagemas. O importante é ser-se íntegro, perseverar no trabalho e sobretudo ter cuidado, muito cuidado (não pergunte) com o dia 5 de cada mês.

16.3.15

Um olho telescópico

Uma visita à minha exposição, guiada e comentada pela Adriana Nogueira – que mais poderia eu querer? Estar lá, é claro. Não vai ser possível, mas daqui das faldas da serra, onde outros afazeres me ocupam, deitarei um olho telescópico e copiarei cada palavra sua para um bloco-notas que mostrarei com desvelo a quem um dia perguntar de que tratava tudo aquilo, afinal.

14.3.15

Cartoon Xira 2015

"Reflexos", de Pawel Kuczynski, e os Cartoons do Ano 2014. A gente vê-se mais logo, no Celeiro da Patriarcal.


30.9.14

Que tal um saltinho ao Algarve?


«Há perto de 16 meses que José Bandeira vem fotografando o antigo bairro do Dafundo, às portas de Lisboa. Primeiro atraído pelos seus edifícios invulgares e paisagens ribeirinhas, ele viria a conhecer Euclides, um imigrante de Cabo Verde que mantém uma pequena taberna na marginal, e através dele muitos dos residentes do edifício Clemente Vicente, onde aquela se situa. A austera construção foi levantada há perto de um século para alojar os operários de duas fábricas da vizinhança e alberga hoje uma população diferenciada, com uma componente significativa de reformados e imigrantes. O “Café Africano”, de Euclides, serve de ponto de encontro entre os moradores do Clemente Vicente e outros habitantes do velho Dafundo, alguns dos quais a viver situações de destituição. Talvez porque Bandeira faz ponto de honra em lhes entregar impressões das fotografias, os habitantes aprenderam a confiar nele e na sua câmara. Aquelas são, assume o autor sem ambiguidade, o compromisso possível entre o seu ideal fotográfico e a ideia que os fotografados têm do que deve ser um retrato. Vistas como um todo, as centenas de imagens que Bandeira coligiu no último ano e meio no bairro oeirense constituem tanto uma demanda estética como documentos de uma realidade em vias de desaparecer.
Em dado momento, o interesse de Bandeira pelos Clássicos levou-o a estabelecer entre o edifício Clemente Vicente e a cidadela de Tróia uma ligação que ele mesmo classifica como "improvável". Ajudou-o a construir o símile o facto de os residentes manterem pequenos barcos, tendas, mesas e cadeiras, hortas, pombais e toda a sorte de estranhos objectos numa faixa adjacente à linha de caminho-de-ferro Lisboa-Cascais, esta por sua vez paralela à linha de costa da hoje muito degradada praia do Dafundo. Na faixa de tendas e barcos Bandeira viu um acampamento micénico e na linha de caminho-de-ferro uma muralha valada (“O que é um comboio suburbano senão um muro que se move?”, pergunta). Para completar o quadro, a temida Avenida Ivens, uma longa, concorrida recta sem travessias para peões, desempenhou o papel de planície troiana. 
Definida uma geografia, Bandeira começou a alimentar a ideia de fazer posar alguns dos residentes como personagens da Ilíada e do Ciclo Épico. Isso implicava contar a cada um deles, de forma tão completa quanto possível, a história da Guerra de Tróia, do Julgamento de Páris aos regressos dos heróis. Como reagiriam à narrativa, e às questões morais que coloca, pessoas que jamais haviam ouvido falar dos Clássicos mas a quem a experiência de vida – incluindo, em muitos casos, a guerra – emprestava uma particular autoridade? Existiriam pontos de contacto entre a fragilidade, desesperança até, da sua situação e a dos contendores gregos e troianos após dez anos de conflito? A ideia viria a passar a projecto de facto quando a professora Adriana Nogueira, da Universidade do Algarve, sugeriu ao autor que aquele poderia ter cabimento no congresso “Imagines IV”, dedicado ao Mediterrâneo Antigo e o seu papel nas Artes Visuais e Performativas. Durante os meses de Julho e Agosto, Bandeira reuniu uma selecção de 24 imagens, tantas quantos os cantos da Ilíada: é esse grupo de fotografias que agora constitui a exposição “Nem Gregos nem Troianos”.
Nos últimos dias de Agosto, os habitantes do Clemente Vicente tomaram conhecimento de que as obras para a conclusão do Passeio Marítimo de Algés, que vai ligar esta localidade à Cruz Quebrada através do Dafundo, iriam ter início. Com a ajuda dos residentes, que esperam melhorias para a zona, os barcos foram deslocados para o areal por uma escavadora. O restante foi destruído e despejado para um contentor verde com a palavra “Renascimento” pintada. Quando viu o contentor sobre o descampado frente ao edifício Clemente Vicente, Bandeira não pôde deixar de se perguntar: “Aquilo é um cavalo?”»
(Do texto de introdução à exposição)